As facções criminais nascidas em presídios parecem ter apontado sua mira para alguns dos últimos santuários de vida silvestre no Rio Grande do Sul: as aldeias indígenas. Investigações da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual (MP) indicam que assaltantes de banco usaram comunidades caingangues como esconderijo após séries de delitos cometidos nos últimos anos. Mais do que isso, aliciaram índios para os assaltos.
Foram identificados 25 suspeitos que teriam se refugiado em uma reserva indígena após ataques a agências bancárias. Alguns dos não-índios presos pelos roubos são suspeitos de envolvimento com uma das maiores associações criminais gaúchas (Os Manos) e, em paralelo, com outra facção, de São Paulo, que age em nível nacional (o Primeiro Comando da Capital, o PCC).
Episódio recente dessa relação simbiótica entre bandidos urbanos e índios ocorreu em fevereiro, na reserva da Guarita, a maior do Estado, localizada no Noroeste e encravada entre três municípios – Redentora, Miraguaí e Tenente Portela (veja o mapa abaixo). Dois assaltos simultâneos e violentos a duas agências bancárias em Miraguaí, com uso de reféns como escudo e queima de viatura policial, resultaram em fuga dos criminosos para dentro da área caingangue.
Em poucos dias, a polícia, com ajuda de helicóptero e dicas de moradores, descobriu que a quadrilha estava morando provisoriamente em um acampamento no mato, dentro da reserva. As cabanas abrigavam até estande para treino de tiro. Um veículo abandonado pelos assaltantes em fuga era de uso do cacique Valdonês Joaquim, o que agravou as suspeitas. Outros dois índios foram reconhecidos como participantes do assalto.
Com base em indícios materiais e testemunhas (inclusive índios) dizendo que os bandidos eram hóspedes na aldeia, quatro indígenas foram presos, entre os quais Valdonês e o pai, o ex-cacique Valdir Joaquim. Um quinto caingangue está foragido. Outros 20 envolvidos – todos não-índios – acabaram indiciados, e a maioria foi presa.
Os policiais apreenderam na reserva um arsenal e dinheiro do assalto, ainda dentro do invólucro plástico usado pelo banco. A comoção foi maior ainda porque, entre os foragidos, estão uma professora (não-índia) que atua na área indígena e seu companheiro, um caingangue.
A onda de prisões provocou um terremoto político na região em torno da reserva, já que Valdonês, que teve prisão preventiva decretada, é também o vereador mais votado de Tenente Portela, a principal cidade abrangida pela área indígena.
Campo fértil para aliciamentos
O caso da aldeia da Guarita é raro, mas não é único. Aconteceu em 2010 na reserva indígena de Nonoai, norte do Estado. Um roubo a agência bancária em Gramado dos Loureiros, que resultou em quatro mortes, foi seguido da detenção de quatro caingangues e quatro não-índios suspeitos pelo crime. Após meses de prisão, eles foram soltos e absolvidos, mas há recurso do MP para tentar a condenação.
Os dois casos têm em comum a suspeita de que lideranças indígenas foram aliciadas pelos bandidos para colaborar nos roubos. O elemento até então não revelado é a possível ligação com facções.
– Parcerias entre índios e não-índios para cometer assaltos temos comprovadas, mas a coisa pode ser ainda pior, já que alguns dos envolvidos têm conexões com facções gaúchas e com o PCC – confirma o delegado Fernando Sodré, do Departamento de Polícia do Interior, da Polícia Civil.
GaúchaZH conversou com outros cinco agentes, que atuam próximos a áreas indígenas, e todos suspeitam que facções apostam nas reservas como campo fértil para aliciamentos. Isso porque são locais ermos e com grandes áreas florestais, excelentes como esconderijo e rota de fuga. A Guarita, por exemplo, tem 23 mil hectares, o que significa 600 vezes o tamanho do Parque da Redenção (37 hectares), em Porto Alegre.
Os policiais ressaltam que a maior parte da comunidade indígena é ordeira, apesar da miséria endêmica em que está mergulhada. Mas o fato de os índios serem comandados por rígida cadeia hierárquica facilitaria a persuasão pelos criminosos, como explica um experiente delegado:
– Basta influenciar uma liderança indígena para recrutar voluntários para o crime, sobretudo em áreas de intensa pobreza, como as reservas.
Contraponto
O defensor de Valdonês e Valdir Joaquim, Vanderlei Pompeo de Mattos, afirma que os dois têm “zero participação” nos assaltos, até por terem nome a zelar, como líderes indígenas. O advogado diz que a principal testemunha contra os caciques é uma indígena com problemas de relacionamento na Guarita e em outras reservas. Mattos considera que houve exagero do Ministério Público com uma “operação de guerra” montada para as prisões de indígenas.
Postado por Paulo Marques