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''Bandido eu não sou'', diz investigado por manter 207 trabalhadores em regime análogo à escravidão na Serra

Pedro Oliveira de Santana assegura que não cometeu crimes, que sempre ajudou seus conterrâneos e se queixa de estar sendo retratado como criminoso

''Bandido eu não sou'', diz investigado por manter 207 trabalhadores em regime análogo à escravidão na Serra
Empresário de 45 anos foi quem contratou as pessoas mantidas em alojamento insalubre em Bento Gonçalves - Bruno Todeschini / Agencia RBS
  • 09/03/2023 - 19:46

Um homem inocente, religioso, temente a Deus e incapaz de fazer mal a seus semelhantes. Essa é a definição que o empresário Pedro Augusto de Oliveira Santana faz dele mesmo. Natural da cidade de Valente, na Bahia, e radicado na serra gaúcha há 11 anos, ele foi preso em 22 de fevereiro (e libertado 10 horas depois) suspeito de ser o responsável por manter 207 safristas da colheita da uva em condições análogas à escravidão, em um alojamento em Bento Gonçalves. O caso é o maior resgate de empregados feito até hoje no Rio Grande do Sul por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério Público do Trabalho (MPT).

As condições insalubres da pousada foram relatadas por seis safristas que fugiram do local. Eles disseram aos fiscais que eram submetidos a jornadas de mais de 12 horas de trabalho, que tomavam banho frio, que se endividaram ao pagar por víveres e itens de higiene pessoal que deveriam ter sido fornecidos pelo empregador (Santana), que não podiam deixar o emprego em decorrência dessas dívidas e que foram espancados ao reclamarem das condições do serviço.

Santana e o dono da pousada, Fábio Daros, são investigados pelo MPT e pela Polícia Federal por tráfico humano e submeter pessoas a trabalho análogo à escravidão.

Após duas semanas de insistência, Santana concordou em falar. A única condição: que os jornalistas visitassem antes o alojamento onde estavam seus empregados no dia da vistoria dos fiscais do Trabalho. A pousada, realmente, mudou de aspecto (veja nas fotos abaixo). Nesta quinta-feira (9), estava limpa, lavada e em plenas condições de uso. Bem diferente do cenário na noite de 22 de fevereiro, quando houve o resgate dos profissionais — o local estava imundo, com roupas de cama jogadas. A culpa disso seria dos trabalhadores, que brigaram entre eles, assegura o empresário.

Santana concedeu entrevista ao Grupo RBS no escritório que mantém dentro de uma fábrica de caixas e pallets, no município de Garibaldi. É uma das nove empresas que ele e seus familiares controlam na Serra. Vestido de forma casual, usava camisa verde água e calça jeans. Demonstrou algum nervosismo. As mãos tremeram quando falou que seus amigos sumiram após sua detenção, por algumas horas. Estava acompanhado de sua esposa e dois advogados, Roberta Adami (amiga e conterrânea) e Augusto Giacomini Werner (contratado em Bento Gonçalves, especificamente para esse caso). 

Em 45 minutos de conversa, o empresário assegurou não ter cometido crimes, afirmou que está sendo submetido por Deus "a uma provação" e se queixou de ser retratado como um bandido. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Origens das empresas na Serra
Santana diz que veio para o Rio Grande do Sul em 2010, para trabalhar na gerência de mão de obra em frigoríficos. Ele já fazia isso em Goiás, onde começou, nos anos 1990, como boia-fria na colheita da cana e, depois, como técnico de laboratório na produção de álcool (já que tinha Ensino Médio). No Rio Grande do Sul, começou contratando trabalhadores para carregar frangos, depois montou empresa própria e continuou no mesmo trabalho. Só depois de dois anos na Serra, começou a agenciar safristas para a colheita da uva:

— Quando foram surgindo as oportunidades, foram aparecendo parceiros. Como eu tenho essa habilidade na parte de gestão, fui gestor em outras empresas grandes, o pessoal me deu a oportunidade de ser o administrador, de ser o gestor da empresa.

Ele confirmou que, na uva, forneceu safristas para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, para descarregar a fruta. Além delas, para produtores independentes. Santana recorda que começou com cerca de 18 trabalhadores na colheita de uva, em 2012, mas depois chegou a ter quase 300. No dia em que a blitz dos fiscais do trabalho aconteceu, 22 de fevereiro, ele estava com 207 empregados para o serviço de carga e descarga dessa fruta, em Bento Gonçalves.

"Desconheço irregularidades"
Santana diz que foi auditado diversas vezes por MPT e Ministério do Trabalho e que em todas as vistorias foi "dado OK" pelos fiscais. Confrontado com as 20 autuações que sua principal empresa, a  Oliveira Santana Prestação de Serviços, recebeu do Ministério do Trabalho, o empresário disse: "Desconheço irregularidades". Os repórteres detalharam vários itens (falta de pagamento em dia, falta de recolhimento de FGTS, condições precárias em alojamentos), e Santana garante que isso tudo foi resolvido com um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado junto ao MPT - ele não informa que o MPT tenta aplicar agora multa por descumprimento desse TAC:

— A gente assinou um TAC, naquela época ali, relacionada mais a alojamento. Eu não consigo lembrar o ano, mas foi só uma vez. As outras vezes, a gente sempre foi auditado e colocada toda a parte. Tipo assim, o que eles pediam, a gente fazia. Eu falo com maior certeza, nunca tive problema de pagamento em dia.

Santana também afirma que já teve alojamento próprio, mas considerou muito difícil manter o serviço, então, passou a indicar seus empregados para pernoitarem em pousadas de outros empresários.

Sem qualquer trabalho similar ao escravo
Santana também assegura desconhecer outra reclamação que corre na Justiça do Trabalho, desde 2021, falando que ele submeteu um empregado à condição análoga a de escravo. O empresário ressalta que jamais na vida quis prejudicar alguém:

— Eu vim de baixo, eu vim do zero, um "boia-fria". Então, eu sei o que é trabalhar, o que é o trabalho. A minha vida foi sempre ajudar as pessoas. Porque, quando eu comecei, alguém me ajudou. Então, jamais eu vou fazer algo que venha prejudicar qualquer pessoa. Mas agora tem vários falsos testemunhos, que a gente vai esclarecer devagarzinho. Eu tenho certeza que vai ser esclarecido. Eu confio muito em Deus, a gente é evangélico há muitos anos, Deus tá na frente das coisas.

Santana admite que passa por um momento delicado, difícil, com muitas acusações:

— Bandido, eu não sou. Quem me conhece de verdade, sabe que fiz trabalho fora do Brasil também. Por onde eu passei, eu deixei uma história, uma história boa. Nunca deixei nada que deixasse uma imagem de bandido, que fiz algo errado. Então, na minha vida, foi trabalhar honestamente. Tudo que eu consegui na minha vida foi com muita luta, muito sacrifício.

Oportunidade aos conterrâneos
Santana afirma que dá preferência a conterrâneos porque é procurado por muita gente da Bahia, em busca de oportunidade de trabalho. Fala que políticos teriam sugerido trazer baianos e que ele concordou:

— É um pessoal trabalhador, pessoal honesto, que vem pra atingir meta e resultado.

O empresário acredita que foi vítima de "alguma coisa muito errada, não sei se envolveu alguma coisa de dinheiro com alguém", mas mesmo assim confia muito neles e tem certeza de que muitos vão querer falar a verdade, mas estariam com medo de se manifestar agora.

— Se trabalhar comigo fosse uma coisa tão ruim, será que essas pessoas estariam comigo todo esse tempo? Fica essa pergunta — desafia Santana.

Os vencimentos de cada trabalhador
O empresário relata que, quando um trabalhador finalizava a safra do ano, já deixava o nome para o próximo ano. Ele lamenta que seu telefone tenha sido confiscado pela PF, porque nele constariam várias mensagens do pessoal implorando: "Seu Pedro, tem vaga?", "Me dá uma oportunidade, tô com filho pequeno, preciso trabalhar". A maioria era indicação dos próprios colegas, das próprias pessoas que já trabalharam, acrescenta o empresário. 

Ele afirma que sempre tem mais gente procurando trabalho do que vagas para oferecer. Isso porque, de acordo com Santana, as vinícolas pagariam em torno de R$ 6,5 mil por empregado, para o contratante da mão de obra. Todos com carteira assinada. Santana informa que "sai em torno de R$ 2 mil limpos, na mão deles. Dá R$ 2 mil líquido".

O restante do dinheiro, diz Santana, é usado por ele para pagar impostos e custear as despesas de hospedagem, alimentação, Equipamentos de Proteção Individual e transporte dos trabalhadores:

— Dos R$ 6,5 mil, quando tu faz as contas, tu paga tudo, vai sobrar, sei lá, não sei se sobra R$ 100 por pessoa.

Comida estragada, dívidas, espancamento na pousada
Santana considera absurdos os questionamentos da reportagem sobre relatos de comida estragada, dívidas e espancamentos ocorridos na pousada. Ele diz que, por ser honesto, vai falar a verdade e que nunca houve dívida:

— Quando eles vieram, era livre, o valor, livre. Eles não gastaram nada. Nunca houve desconto de nada. Eles falaram que não receberam, mas como é que eles já gastaram esse dinheiro antes, se eles não receberam?

Diz que nunca emprestou dinheiro na vida e que jamais deu aval para que seus empregados pedissem emprestado:

— Se eles têm alguém que eles pegavam dinheiro emprestado, pode ter certeza que não tinha o meu aval. Estão tentando jogar pra mim porque, quando o negócio tá meio feio... Tanto que eu não tenho amigo. Meus amigos sumiram tudo, todo mundo com medo de... Sumiu todo mundo. Mas eu tenho o maior amigo do mundo, que é Deus. Eu tenho certeza que ele tá comigo.

O empresário também ressalta que a comida era terceirizada, fornecida por um restaurante que trabalha para "mais de 200 empresas da serra gaúcha".

— Como é que essa comida tá estragada, de um restaurante tão grande? Eu posso apresentar as notas de alimentação, são valores muito altos — afirma Santana.

Seguranças e policiais
Santana garante que jamais teve capanga ou segurança. Que anda por tudo, inclusive na Capital, sozinho. Ele afirma que conhece os funcionários da pousada suspeitos de espancar seus empregados, inclusive um PM que comandaria as torturas, mas afirma que nenhum deles trabalhou para ele.

— Nenhum policial nunca prestou serviço pra mim, nunca. Eu não consigo entender como é que um servidor público vai prestar serviço pra alguém por emprego. Eu nunca vi — atesta.

Também garante que jamais viu na pousada arma de choque, spray de pimenta e cassetete, como encontrados pelos fiscais do MPT. Ele informa que, na maioria das vezes, levava os funcionários para a colheita, pessoalmente.

— E nenhum deles nunca me falou nada disso. Não fizeram nenhuma reivindicação. Isso aí eu tenho certeza. Não tenho nenhum acesso à pousada. No máximo, ia lá na frente pegar meus funcionários, quando faltava carro.

Santana admite que a Brigada Militar pode ter sido chamada para interferir na pousada, mas durante alguma briga entre os empregados.

Relações com o dono da pousada
Santana afirma que escolheu a pousada porque ela é organizada, toda montada. PPCI, alvará sanitário, estava tudo em dia, garante.

— Toda documentação da pousada estava em dia. Se a pousada não tinha condições nenhuma, por que deram a liberação pra essa pousada funcionar? — questiona.

O empresário admite que indica trabalhadores para pernoitar no alojamento (hoje interditado), mas garante que não é sócio de Fábio Daros, o dono do estabelecimento:

— A única coisa que eu fiz foi vender uma lotérica para ele. Só. Acontece que tem várias pousadas em Bento, mas você conhece alguma que receberia baianos? Se eu trouxer agora 10, alguém receberia?.

Sobre responsabilidade de Fábio Daros nos espancamentos narrados, Santana diz não acreditar nisso. E também que não se considera prejudicado por Daros.

— Porque, se ele me prejudicasse, ele ia estar prejudicando a ele também, porque a pousada não é minha, a pousada é dele — justifica.

Ameaças na prisão
Santana relata que uma das piores coisas que já lhe aconteceu foi ir para a prisão. Ele recorda que, dia 22, recebeu ligação da Polícia Federal (PF) para descer até a pousada e obedeceu, já que "não tinha por que ter medo de nada". Quando chegou, foi preso por, supostamente, explorar trabalho análogo à escravidão.

O empresário lembra que foi encaminhado à PF, ficou em silêncio e depois foi enviado ao presídio.

— Fiquei sozinho, isolado. Bem complicado. Muitas ameaças, porque a mídia tinha soltado que eu era uma pessoa que estava fazendo, escravizando baiano. Muitas ameaças, todo tipo de ameaças, ameaçaram minha família. O pessoal lá dentro, todo mundo estava já sabendo. Pode ter certeza que não, eu nunca ia querer passar por isso. E uma coisa que eu uso muito na minha vida, com 45 anos de idade, é a empatia. O que eu não quero pra mim, jamais vou querer pra ti — diz Santana.

Montagem para prejudicar
Santana acredita que "alguma coisa foi muito bem montada pra fazer algo" contra ele.

— Alguém por trás que quer te prejudicar, eu acredito que pode fazer qualquer coisa — argumenta.

Questionado sobre quem gostaria de prejudicá-lo, o empresário diz que tomou conhecimento de que estariam montando até cooperativa para assumir o serviço que ele fazia:

— Por aí, fica uma interrogação. Eu não tenho nada concreto, mas eu tenho certeza que vai ser descoberto, eu não tenho dúvida.

Inquirido se a "armação" viria da PF, do MPT, da PRF ou de outras autoridades, ele nega:

— A PF é um órgão muito respeitado. Chamaram ela. E se chamar, eles têm que vir. Eu não tenho dúvida disso. Tanto a PF, quanto a PRF. Eu tenho certeza que vieram, tanto como o Ministério Público. Eu não tô acusando ninguém. O forjamento pode ser de alguém que montou alguma coisa e chamou eles pra tentar provar o contrário. Jamais eu vou desrespeitar um órgão respeitado, como o Ministério do Trabalho.

"Qual erro cometi?"
Santana diz que "santo ninguém é", mas que gostaria de saber:

— Qual erro cometi, que Deus permitiu que eu passasse por esse momento difícil?

Mas o empresário diz ter certeza de que vai provar que jamais teve trabalho análogo à escravidão:

— Tudo que fiz na minha vida até agora, até hoje, foi pra ajudar, foi pra dar oportunidade pra alguém que precisava.

Sobre os bens bloqueados, diz que terá de provar agora o contrário do que estão dizendo a respeito dele:

— Prejudica, com certeza, porque quando tem tudo parado, tudo paralisado, tu não tem como movimentar. Com certeza, prejudica.

Ele também não considera justo pagar indenização aos resgatados, porque não teria cometido crime.

— Se eu tivesse cometido, a primeira coisa que eu teria feito era chegar e pagar e não ter bloqueado os bens. Mas jamais eu vou me culpar por uma coisa que eu tenho certeza que eu não cometi — assegura.

A reportagem solicitou ao Ministério do Trabalho e MPT posição sobre as colocações do empresário Pedro Santana. As duas instituições reafirmam que as condições em que se encontravam os trabalhadores eram análogas à escravidão.

Postado por Paulo Marques

Fonte: GZH