A frase é de uma travesti que trabalha como garota de programa há 14 anos no município. Desde que iniciou no ramo, ainda muito jovem, nunca se sentiu tão amedrontada como nos últimos meses, quando outra travesti resolveu se impor, com ameaças e bastante violência, e cobrar o valor diário de R$ 80,00 pela rua, em um ponto que já é histórico na cidade.
Em uma conversa com a Rádio Uirapuru, as travestis relataram ter deixado de trabalhar no local mais conhecido pela circulação de garotas de programa, depois que uma colega de profissão começou a andar armada na região, se intitulando dona da área.
Ela veio depois e ainda quer que a gente pague rua. Com o marido junto, ela passa por nós ameaçando, agredindo e dizendo que não quer mais nos ver ali se não pagarmos pra ela”, diz.
A situação ficou ainda pior depois que uma delas resolveu enfrentar a coação e enfrentar o problema por conta própria. Houve troca de tiros nas imediações do motel Anonimus, na Vila Popular, e um homem acabou ferido. Antes da ocasião, elas resistiam, mesmo com receio de alguma represália. “Cedo ou tarde ela vai fazer alguma coisa grave pra alguém, porque não aceita que a gente trabalhe por conta, sem pagar rua pra ela”, alerta.
‘Esse é o meu trabalho’
Há cinco anos em Passo Fundo, a travesti que não será identificada para sua própria segurança, conta que nunca precisou “pagar rua” para fazer programa. “Eu já paguei pra divulgar em site, em veículo de comunicação, mas na rua nunca, em lugar nenhum. E olha que já rodei esse Brasil. Não existe isso. O que pode ter é um pensionato para as travestis, onde tu fica, se arruma, dorme e daí paga pela estadia, mas não pelo ponto. A rua é pública”, conta.
A mesma travesti está sem trabalhar há quase um mês, por medo de represália. “Eu não posso descer pra rua, porque sei que ela vai passar e já avisou que vai fazer alguma coisa. A última vez que eu fui pro ponto, ela veio perto de mim, baixou o vidro do carro e mostrou a arma em cima das pernas. Um revólver calibre 32. Disse que tinha que sair dali e que eu já estava avisada. Senão ela tomaria uma atitude. Eu fiquei apavorada. Saí correndo e não voltei mais”, conta.
Desde então, a garota de programa busca o sustento através dos aplicativos. “Mas não é sempre que tem cliente por ali. É de vez em quando e tenho que pagar pelo anúncio. O que rende mesmo é a rua. Se eu não tiver na rua eu não ganho pra pagar as minhas contas, meu aluguel, a luz e a água. Esse é meu trabalho e das outras meninas que estão na mesma situação”, revela.
Pelo menos outras 10 travestis estão sem trabalhar, conforme o grupo que conversou com a reportagem. O ponto, onde era possível encontrar as garotas, agora está deserto. “É só ela e outras duas que ela trouxe de fora”, diz, ao se referir à pessoa da desavença.
Hierarquia
De acordo com outra entrevistada, que é natural de Passo Fundo, e também terá o nome preservado, na rua não tem agenciadora ou cafetina, mas um consenso entre elas. “O que existe é uma hierarquia”, explica. E continua: “É uma questão de lógica. Você está numa empresa e é a mais velha. Eu cheguei agora, então vou conversar com você, pra você me orientar. É assim. A gente entra em um consenso entre todas e separa os espaços. A mais antiga fica no ponto que já era dela, eu que estou começando fico nesse cantinho, a outra naquele. Cada uma no seu quadrado e todas trabalham”, expõe.
Ainda, segundo a mesma travesti, os únicos motivos que podem causar conflito entre elas é o roubo – uma delas roubar de algum cliente – e o pagamento pelo ponto em via pública, o atual motivo das confusões registradas na região da Vila Popular. “Nós procuramos a polícia pra resolver nosso problema. Estamos sendo ameaçadas com arma de fogo, agredidas. Isso é crime. Eu liguei para a Brigada Militar no dia que fui ameaçada com o revólver e eles simplesmente me disseram que era um desacordo comercial e não fizeram nada”, desabafa.
‘Não tem ninguém por nós’
Eu falei pra eles que ela estava armada, que tinha me mostrado a arma, que me ameaçou. Me disseram pra procurar a delegacia”, conta.
Em outra ligação feita junto com a reportagem, o policial que atende pede para a denunciante que anote a placa do veículo e registre ocorrência. Do outro lado da linha ele diz: “não tem como mandar uma viatura pra abordar todos os veículos desse modelo que estiverem no local. Tenta anotar a placa da próxima vez”.
A próxima vez não vai acontecer, se depender das garotas de programa. “Essa história toda vai acabar que, uma hora ou outra, ou a gente resolve, ou a gente resolve. Porque a polícia não existe para nós e não nos protege”, denuncia.
A maior revolta em toda a história é que o grupo se sente desamparado, sem qualquer proteção. “Não tem ninguém por nós. A gente realmente está sozinha. Há um tempo atrás a polícia era a nosso favor. Estava com nós. Antes nós procurávamos a delegacia e tinha um retorno. Chamava a Brigada Militar e eles vinham. Agora não estamos com ninguém. Por isso que estamos tão assustadas”, argumenta.
Postado por Paulo Marques