Com pouco mais de 2.300 habitantes, o município de Benjamin Constant do Sul, distante cerca de 130 km de Passo Fundo, tem sido palco de seguidos conflitos envolvendo indígenas. A violência que se instalou na pequena cidade do interior, iniciou há quatro meses dentro de uma aldeia de caingangues e logo extrapolou os limites territoriais, vitimando outros moradores da região do Alto Uruguai.
Enquanto a situação não se resolve, a comunidade convive com a preocupação e o pânico, e o número de vítimas aumenta: “É muito medo. Eles estão fazendo demais, estão muito armados e a gente não pode falar. Quanto mais quietos ficamos, melhor é”, diz uma moradora da cidade, que preferiu não se identificar, por receio de represálias.
Os ataques iniciaram ainda em março deste ano, depois que dois grupos da Reserva do Votouro se desentenderam, segundo as investigações, por desacordos financeiros, devido a desigual distribuição do lucro do arrendamento das terras. Desde lá, dois jovens foram mortos no município: um era integrante da própria aldeia e o outro apenas morava nas imediações. O fato mais recente é do aluno de licenciatura, que nada tinha a ver com a confusão. A Rádio Uirapuru esteve na localidade e conta toda a história com exclusividade.
Morto por engano
Ainda assimilando a perda do único filho, morto ao passar pela reserva há pouco mais de um mês, a professora de ciências humanas, Maria Ignez Cozer, mostra com cuidado o crucifixo que Nathan Cozer Hochmann, de 21 anos, carregava no momento em que foi atingido pelo tiro fatal. “Ele ganhou essa corrente quando fez 18 anos e não saía de casa sem ela. Aquela noite ele pegou o crucifixo e guardou atrás do celular. Foi a primeira vez que saiu sem colocar no pescoço”, lembra.
Na mesma noite, o jovem, que morava com os pais em uma casa simples, porém acolhedora, saiu para comer uma pizza com os amigos. Eles foram até a cidade de Faxinalzinho, município vizinho, onde ficaram por quase uma hora. Por volta das 21h30, pegaram a estrada de volta e foram surpreendidos, segundo o pai de Nathan, por uma emboscada. “Os índios cercaram eles com três carros e quando chegaram perto, colocaram a arma pra fora e atiraram. Meu filho tentou se abaixar, mas o tiro pegou nele pelas costas”, conta Vitalino Hochmann.
Assustado e sem entender o que estava acontecendo, o motorista perdeu o controle da direção e o carro capotou. “O amigo dele se jogou na capoeira e os índios saíram atrás, atirando. Não sei como se salvou”, diz. Quando os atiradores olharam dentro do carro e perceberam que haviam matado a pessoa errada, desistiram de investir contra a outra vítima e abandonaram o local.
O alvo da tocaia era, na verdade, Edimar Peres, indígena conhecido como “Gringo”. Vereador na pequena cidade, o caingangue rival já havia fugido para Passo Fundo, quando o fato ocorreu, e estava instalado no prédio da Funai – local em que julga mais seguro ficar. Ele e outros caingangues saíram da aldeia depois que Vitor Hugo foi morto a tiros em um confronto dentro da reserva, provocado única e exclusivamente, segundo a Polícia Federal, por dinheiro.
Blitz
Por não aceitar o retorno do desafeto, o cacique de Votouro e seus afins haviam adotado como costume montar campana todas as noites, depois que a aula da aldeia terminava, na estrada que passa pela reserva. Eles realizavam uma espécie de blitz: abordavam os motoristas e conferiam quem estava dentro dos veículos, a fim de encontrar seus desafetos. “O carro do Gringo era o mesmo modelo, a mesma cor do carro que o amigo do Nathan tinha. Eles comemoraram a morte do meu filho antes mesmo de ver que tinham matado a pessoa errada”, lamenta.
Risco de vida
Apesar da dor que sente e do risco que corre, já que atua dentro da reserva, a mãe de Nathan não abandonou o trabalho. Mari cumpre com seu horário no educandário como sempre fez, desde 1995. O motivo é simples: precisa se aposentar e manter a renda da família, que também depende do seu salário. “Foram instaladas câmeras na escola, pra conseguirmos monitorar. Duas vezes foram levadas embora, mas a diretora reinstalou. Eu não fico mais na sala com os alunos, não dou mais aula, mas tenho que ir até lá”, explica.
Para ela é difícil voltar ao educandário, não apenas por estar perto dos possíveis assassinos do filho, que, inclusive, conviveram com a família dela durante anos, mas, também, porque era onde a professora estava quando recebeu a dolorosa notícia. “Tocou meu telefone e meu marido disse ‘mataram o Nathan’. Eu saí desesperada no pátio, gritando que meu filho estava morto".
Um professor deu carona para ela até a caixa d’água, que fica próximo ao local do crime. “Quando cheguei, vi o Nathan já fora do carro. O pai dele quem tirou. Coloquei a mão e tive a impressão que ainda vivia, porque estava quente. Nós dois – mãe e pai – carregamos ele na ambulância”, relata.
Emocionado por ouvir a esposa lembrar do momento mais difícil que já enfrentaram até então, Vitalino acrescenta: “Me disseram para não ir porque iriam me matar também, mas eu fui. Se eles mataram o piá, podiam me matar também. E se o piá tivesse vivo, eu ia salvar ele. Nem que custasse a minha vida, eu ia salvar ele”, diz, bastante abalado. Apesar da esperança dos genitores, o filho chegou ao hospital já sem vida.
Tortura e cadeia
Horas depois do homicídio, já na madrugada, o prefeito de Benjamin Constant foi capturado pelos mesmos indígenas. “É que quando eles brigam entre eles, todo mundo vira inimigo”, justifica. Cumprindo o segundo mandato à frente da prefeitura, Itacir Hochmann era tio de Nathan. Ele conta que sempre manteve boa relação com o cacique e os demais moradores da aldeia, mas naquela noite a situação mudou.
O prefeito teve o carro alvejado a tiros, segundo ele, porque não parou na conhecida blitz adotada pelos índios, depois do desentendimento ocorrido dentro da aldeia. “Eu fui buscar um pessoal que trabalha em Faxinalzinho, mas eles –índios – tentaram me abordar no caminho. Eu acelerei muito e o disco do carro quebrou, não consegui mais andar. Acertaram 57 tiros no carro e dois pegaram em mim, no meu rosto e na cabeça, de raspão”, fala, enquanto mostra as cicatrizes que restaram.
Conforme apura a investigação policial, o prefeito foi amarrado e preso no “Boi Preto”, como é denominada a cadeia indígena. Lá ele teria sido torturado, agredido e humilhado. Uma foto dele dentro da cela chegou a circular nas redes sociais dos responsáveis pela violação, mas foi excluída logo depois.
Itacir confirma que ficou preso na cadeia da reserva, mas não comenta sobre as agressões, apenas diz que, devido ao ferimento causado por tiro, perdeu muito sangue e passou mal. “Achei que não aguentaria mais muito tempo, perdi quase um barril de sangue”, conta.
Já no início da manhã, policiais militares e agentes da saúde se aproximaram da reserva e negociaram a liberação do prefeito. Uma das pessoas responsáveis pela negociação, que também não quis se identificar, confirmou que ele havia sofrido outros ferimentos, além dos causados pelos tiros.
Os relatos sobre o motivo que levou Itacir à cadeia, também divergem. Segundo o próprio prefeito, o cacique teria dito que ele ficaria preso na cela de chão batido, sem qualquer condição humana e com visível sangramento, para que pudessem protegê-lo de outro ataque. Mas um familiar de Itacir traz outra versão: “Eles queriam que o prefeito dissesse que não foram eles que mataram Nathan, por isso que prenderam ele lá”, enfatiza.
No dia seguinte, a casa do prefeito foi alvejada a tiros. O carro, que pertence à Prefeitura Municipal e estava no pátio da casa Itacir, ainda apresenta as marcas da segunda investida. “Nós terminamos de velar o Nathan, quando eles foram até minha casa e encheram de tiro”, conclui.
Acampados na Funai
Há mais de dois meses, o prédio da Funai abriga os caingangues de oposição ao cacique Eliseu Garcia. A Justiça concedeu o pedido de reintegração de posse feito pela diretoria da Funai, que obriga as famílias instaladas no local a desocupar a área, mas o prazo foi prorrogado por mais 30 dias, enquanto o grupo aguarda por alguma solução. “Nós queremos voltar pra nossa terra. A gente nasceu lá. Só que a gente não pode voltar por enquanto, porque senão eles matam a gente”, desabafa.
Neusa Lopes diz que busca na Justiça, a proteção para retornar para casa. “A gente tem medo de voltar lá, porque eles botam a gente na cadeia ou matam”, acrescenta.
Do dia 08 de março, quando Vitor Hugo dos Santos Refey, 22 anos, foi baleado e morto dentro de casa, até o início do mês de maio, quando familiares da vítima foram ao Ministério Público Federal de Erechim pedir por Justiça, os homens da família opositora ao cacique se esconderam no mato durante a noite, temerosos por suas vidas. “Foi o vice-cacique que mandou os homens lá na casa. Eles chegaram encapuzados, cheios de arma, pra cumprir uma prisão. A gente disse que não precisavam estar armados, que ali não tinha criminoso, daí eles atiraram”, conclui.
Cadeia indígena
Chamada de “Boi Preto”, a cela foi construída dentro do porão de uma igreja. De chão batido e sem sanitários, a cadeia faz parte da cultura indígena. Qualquer desobediência ou afronta às ordens da liderança termina na prisão, que pode durar horas ou longos dias.
Neusa explica que os costumes denominam o cárcere como “a lei eterna”, mas, mesmo sendo tradição, ela não concorda com a forma desumana que os punidos são tratados. “Não tem vaso, não tem nada. Se ganham comida, quando ganham, tem que comer do lado das necessidades. Eu tenho netos e não consigo pensar neles presos lá”, completa.
Origem
Os indígenas de Votouro estão instalados na área desde a década de 1960, conforme informou a Prefeitura de Benjamin Constant do Sul. Com o passar do tempo as famílias se multiplicaram, especialmente nos últimos 10 anos, quando a população indígena deixou a parcela de 5% da população para se tornar metade dos habitantes do município.
Investigações
Sem revelar detalhes sobre as investigações, o delegado Mauro Vinícius Soares de Moraes, explica que a situação de Votouro não é diferente do que ocorre nas demais aldeias da jurisdição da Delegacia de Polícia Federal de Passo Fundo. “Basicamente os conflitos são motivados nas reservas, hoje, por questões pecuniárias, financeiras. Os índios estão brigando pelo dinheiro que lucram com os arrendamentos, o que tem causado essa sequência de violências, inclusive, com mortes”, declara.
Segundo o delegado, a causa de tantos conflitos é a ingerência do valor recebido com arrendamentos, que não é distribuído igualmente entre todos os moradores. “O problema é que o dinheiro fica unicamente com a liderança, com o cacique e os apaniguados dele, que pegam em armas, e o resto da comunidade está passando graves necessidades”, afirma.
Conflitos
Os conflitos ficaram mais acirrados, segundo o delegado, a partir dos anos de 2010 e 2012, quando os arrendamentos deixaram de ser criminalizados, como deveriam. “O índio nem pode arrendar as terras, porque são da União. Eles estão lá, fazendo usufruto. Eles que devem produzir”, enfatiza.
Desde então, há disputas constantes por poder. “Quem está na liderança, tem o dinheiro, os demais chegam a passar fome”, compara. A solução para Mauro Vinícius seria uma nova legislação, que não pune somente o indígena, mas o branco, que planta na área indígena. “Essa violência só termina quando os brancos, responsáveis indiretamente pelos conflitos, responderem criminalmente por suas plantações ilegais em área indígena”, conclui.
Outras mortes ocorreram em ocasiões passadas, por desentendimentos que envolvem dinheiro em disputas por mais terra ou por posições na política local. Os órgãos de segurança atuaram sempre que crimes ocorreram, acalmando por mais algum tempo os conflitos, que voltaram ocorrer.
Ministério Público Federal
O Ministério Público Federal de Erechim ajuizou ação penal contra 10 pessoas, apontadas como responsáveis pela morte do indígena Vitor Hugo. Em relação ao homicídio do jovem Nathan e as duas tentativas de homicídio que ocorreram na mesma noite, contra o amigo do Nathan e o prefeito da cidade, Itacir Hochmann, a procuradoria aguarda conclusão do inquérito policial.
De acordo com a procurado de Justiça responsável, Letícia Benrdt, também foi solicitado ações de segurança no local, para que a ordem seja reestabelecida na aldeia e para que as famílias expulsas possam retornar.
Postado por Paulo Marques